08 julho 2007


Planificar uma Estratégia de Formação de Leitores

Perfil 1
. aluno com 11 anos
. sexo masculino
. gosta de futebol, aventuras
. tem uma leitura fluente, mas não lê

O menino que não gostava de ler

“Pelo sonho é que vamos...” como diz o poeta e é sempre bom sonhar-se que, de qualquer modo, conseguimos levar alguém a gostar de ler um livro mesmo que pequeno; a gostar de sentir prazer ao folhear um livro; a gostar de apreciar o cheirinho bom das folhas de um livro quer já antigo quer acabadinho de ser impresso, cheiinho de letras, de palavras, de frases que nos acariciem a alma.
Neste meu trabalho, permito-me sonhar que levo o meu rapaz, o Gonçalo, a gostar de ler.
Poderia ser o meu filho, de nome Gonçalo também.
Mas não. É um aluno meu, de onze anos ladinos, irrequietos, engraçados, cabelo ruivo e cheio de gel, inúmeras sardas a pintalgarem-lhe o rosto meigo, sorriso de orelha a orelha, sempre o primeiro a levantar a mão para ler.
E que bem que lê! Fluentemente, diria eu. Vozita clara, fresca, como tudo nele. Adora futebol. É do Benfica. “Como o meu avô, o meu pai e o meu mano Pedro.” – diz ele, todo feliz, quando me mostra o seu cartão de sócio, cheio de orgulho. O seu ídolo é o Nuno Gomes. Tem na sua estante do quarto, cheio de Sol, a biografia dele mas ainda não a leu até ao fim. Talvez vá em metade... “Não gosto de ler!” – diz, olhando-me com um misto de pena e atrevimento. Não é para me provocar bem sei. Não gosta mesmo! “Gosto é de aventuras!” – acrescenta. “Se eu fosse o Super-Homem...”. E a sua vozita faz-se ouvir, no meio do burburinho dos colegas de turma, que sorriem, habituados às suas peripécias do dia-a-dia.
Olho-o e sorrio. Vejo nele o meu filho mais novo e quero ajudá-lo a descobrir que os livros, além das crianças, são o melhor do mundo.
O ano lectivo começou há um mês e proponho-me levar o Gonçalo a gostar de ler até ao final deste ano. Quando o terceiro período chegar ao fim, o meu Gonçalo sardento irá querer levar para a praia ou para a piscina, a sua bola vermelha e branca, os óculos de sol, o MP3 e, no fundo da mochila encarnada, junto ao lanche, um livro de aventuras ou talvez de poemas. (Posso sonhar, não é?). Debaixo do chapéu-de-sol, cansado de nadar e de se exibir a saltar da prancha para as águas azuis da piscina do Parque Desportivo, vai pegar no seu livro e ler. A sua manhã foi uma verdadeira aventura. Até a sua colega loirinha, a Anita de doces olhos azuis e por que o seu coração bate com mais força, olhou tanto para ele!
A grande questão é: “Como levar o meu Gonçalo a ler?”. Pensei, pensei e acho que cheguei a uma conclusão. Talvez dê certo! Quem sabe? Se não resultar, experimento outra estratégia. O importante é tentar, tentar sempre e nunca desistir. Um professor não pode desistir por mais difícil que a tarefa lhe pareça. E que complicada esta é!
Antes de elaborar o meu plano de aula, dirigi-me à biblioteca da minha escola. É um espaço óptimo, soalheiro, agradável, cheio de pessoas simpáticas, dispostas a ajudar.
Não tenho só um Gonçalo no 6.º ano, turma A, mas seis ou sete. E é neles que penso, neste momento, ao falar com a Dona Amélia que me indica livros sobre futebol, assunto que não domino minimamente.
“Comecemos pelos mais acessíveis, professora Olga” – diz ela – “Temos aqui Pedro, o Fura Redes, de Fernando Correia, da Alêtheia Editores. Depois talvez o livro Tensão no Euro 2004, de António Avelar de Pinho e Pedro de Freitas Branco, da Editorial Presença e, por fim, a colecção Objectivo Golo, de Nuno Magalhães Guedes, da Verbo. Que lhe parece, professora?”.
Estou espantada. Não sabia que a nossa biblioteca estava tão bem apetrechada.
“Óptimo, dona Amélia.” – respondo eu.
“Não se esqueça que ele pode sempre consultar sites na internet com biografias e entrevistas aos seus futebolistas preferidos.” – acrescenta a dona Amélia.
“Grande ideia! E quanto a aventuras, o que me aconselha?” – pergunto eu.
Percorremos os corredores cheios de livros arrumadinhos, certinhos, colocados no sítio certo, à espera de serem requisitados e transformados em companhia, em amigos. Iniciámos a viagem pelos mais fáceis como Chiu! Que estou a ler!, de Maria da Conceição Coelho, da Europa América, passando pelos 1001 Detectives, da Editora Caminho, escrito pelo Carlos Correia e pela Maria Alberta Menéres e acabámos no Bando dos 4, de João Aguiar, publicado pela Editora Asa.
Munida desta informação preciosa, regressei a casa e preparei a aula para o dia seguinte. Aproveitando para leccionar o conteúdo programático da entrevista, entreguei à turma do meu Gonçalo, um guião de entrevista, que ajudasse os meus alunos nas questões que poderiam colocar, em trabalho de par, aos seus heróis ou ídolos preferidos e lhes ensinasse a técnica da entrevista.
Quem seria o ídolo ou o herói escolhido pelo Gonçalo e pela Joana? A quem iriam colocar questões? E que questões essas? Confesso que estava curiosa.
Depois do trabalho feito, os diferentes pares foram lendo, à turma, as respectivas perguntas. Algumas bem engraçadas e que nos arrancaram sonoras gargalhadas; outras bem estruturadas, sérias e mesmo profundas. O Gonçalo e a Joana decidiram entrevistar o José Mourinho.
Ainda bem que as questões não saíram da sala 7, do Pavilhão B, ou o nosso Mister ficaria seriamente atrapalhado, perante estes dois jornalistas em miniatura.
Na aula seguinte, fomos à biblioteca e cada um requisitou um livro, que teria de ler, em casa, durante as duas semanas seguintes. O Gonçalo escolheu Pedro, o Fura Redes. Eu aproveitei para requisitar e reler Os Capitães da Areia, do meu querido Jorge Amado. É importante, é necessário que os alunos sintam que eu sou como eles e que eu seja um exemplo a seguir.
Passaram as duas semanas e dedicámos uma outra semana à apresentação dos livros lidos. Comecei por lhes ler um pequeno excerto do meu livro, em voz alta e expressivamente. Falei-lhes um pouco da história e apontei-lhes as razões que me levariam a aconselhar a sua leitura. Ouviram-me atentamente e todos fizeram o mesmo. No final, preenchemos uma pequena ficha de leitura e quem quis, ilustrou-a.
O Gonçalo desenhou um jogador do Benfica, todo aperaltado, equipado a rigor, uma bola vermelha enorme e uma baliza descomunal em que cabiam todos os golos da sua imaginação!
Como trabalho de casa teriam de fazer uma pesquisa sobre o autor, procurando na net, num manual ou numa enciclopédia e redigir um pequeno texto para ser lido na aula. Como texto do mês, a que os habituara desde o quinto ano, poderiam aproveitar para fazer o resumo ou o reconto da obra acabadinha de ler e ilustrá-la. Dei-lhes uma semana para a tarefa ficar concluída.
Todos fizeram o que eu lhes pedira no tempo proposto. Os recontos e os resumos foram corrigidos por mim, lidos à turma, pelos respectivos autores e colocados nos quadros de cortiça da sala 4, do Pavilhão A.
“E agora, o que faça relativamente às aventuras?” - pensei eu – “Isto é que é uma verdadeira aventura para mim!”
“E se eles escrevessem uma pequena aventura colectiva será que resultaria como preparação do caminho para mais uma ida à Biblioteca Escolar?” – interrogava-me.
Pensei e considerei a ideia boa.
Numa sexta-feira, à tarde, aos dois últimos tempos, cheguei à sala e propus-lhes a redacção de uma aventura colectiva começada por “Era uma vez...”, em que cada um continuasse a ideia do outro e em que as frases fossem sendo, simultaneamente, registadas no quadro e nos cadernitos diários.
A princípio refilaram com o humor costumado de sexta-feira à tarde, mas depois que aventura! Que aventura dali saiu! Havia um príncipe loiro, musculoso, de lindos olhos verdes, uma princesa morena, linda de morrer, de enormes olhos azuis, um castelo bem guardado por um terrível dragão que lançava chamas azuis das narinas enormes e um casamento feliz, na igreja de Mafra, depois de um salvamento complicado e bem arriscado.
Na segunda-feira seguinte, o conto colectivo foi lido à turma. A grande maioria tinha-o ilustrado e alguns tinham-no passado a banda desenhada.
Os trabalhos foram afixados no painel da nossa sala e mais tarde no Polivalente e na Biblioteca.
Passados dias, lá fomos nós, de novo, à nossa biblioteca requisitar livros de aventuras.
O Gonçalo requisitou os 1001 Detectives! Os livros foram lidos, durante as férias da Páscoa e preenchidas as respectivas fichas de leitura.
Ao regressarem, apresentaram as suas fichas e os seus livros aos colegas. Surpresa das surpresas, os olhitos atrevidos do meu amigo Gonçalo brilhavam ao falar do seu livro.
Deduzi que tinha gostado do que lera e começado a gostar de ler. Fiquei feliz, como ficamos sempre que conseguimos alcançar o que queremos.
Agora o meu Gonçalo continua a ler fluentemente e lê. Descobriu que se podem viver aventuras, ser o super-homem, jogar à bola, marcar golos como o Ronaldo, sem sair do conforto do sofá. Descobriu também que pode viajar no tempo, atravessar oceanos, conhecer novos mundos, ir a estádios repletos de adeptos, à luz do seu candeeiro de mesa-de-cabeceira, debaixo dos seus cobertores e no conforto da sua camita e eu na minha, já cansada de mais um dia de trabalho, apago a luz, cerro os olhos e penso: “Que bom! O meu Gonçalo já lê!”

Olga Macedo. Escola Básica dos 2.º e 3.º Ciclos de Mafra

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