22 maio 2007

Receita de Leitura


DOSE DE AMOSTRA:
“A televisão mais bonita do mundo”

“(...) Olhei o cinzento da televisão e umas três luzes apareceram de repente como se fossem um semáforo maluco e tive a certeza que aquela era mesmo a televisão mais bonita do mundo. Fez um ruído tipo um animal a respirar e acendeu devagarinho. Não consegui ficar calado e disse bem alto: «chéeeeeeee, essa televisão é bem esculú!», e todos riram do meu espanto assim sincero: era a primeira televisão a cores que eu via na minha vida.
A imagem apareceu bem nítida e cheia de cores. Era linda e eu nunca tinha reparado que um apresentador de televisão podia vestir uma roupa com tantas cores. Lembro-me ainda hoje: estava a dar o noticiário em língua nacional tchkwe. Ninguém entendia nada, baixaram o som. A tia Rosa disse-me «fecha a boca, vai entrar mosca», e todos riram outra vez. Não me importei.
(...) Fiquei com inveja dos filhos do Lima que todos dias iam ver cores naquela televisão a cores: a telenovela Bem-Amado com o Tito e o Piranha, os bonecos animados do Mitchi, o Gustavo com três fios de cabelo e até a pantera Cor-de-Rosa com o cigarro bem comprido. «Tudo a cores, como uma aguarela bem bonita», pensei, enquanto a tia Rosa me fazia festinhas na cabeça.”

Ondjaki – Os da minha rua. Lisboa: Caminho, 2007.

COMPOSIÇÃO:
Conjunto de pequenas histórias redigidas por um jovem escritor angolano, de edição “fresquinha” (Março de 2007). O princípio activo baseia-se na realidade, com as recordações da infância e adolescência que nos transportam a um tempo mágico. As situações mais cómicas entrecruzam-se com o lirismo, a inocência e o sentimento próprios dos primeiros ensaios da vivência de emoções. Actua rapidamente sobre a perda de memória.


INDICAÇÕES:
Esta obra é especialmente indicada a todos aqueles que desejam fazer um lifting emocional e relembrar que um dia já foram “mais” pequenos... e agiram em conformidade! Também recomendado aos “trintões”, contemporâneos do autor, pelo conjunto de referências comuns, com especial incidência na década de 80 (confronte-se com a dose de amostra) e, ainda, aos adolescentes do século XXI, pela identificação com a composição dos fármacos literários. “Mudam-se os tempos”, mas nem sempre se mudam as vontades!

PRECAUÇÕES:
Os mais velhos (os referidos trintões) não se devem centrar no revivalismo exagerado, pois correm o risco de desvalorizar outras fases do seu desenvolvimento, como a actual “pós-adolescência”. Experimentem, antes, partilhá-lo com a geração precedente.

POSOLOGIA:
Se estiver a gostar, leia só uma história cada dia, assim o prazer prolongar-se-á por 22 dias, com duas tomas extra: duas cartas em tom poético trocadas entre o autor e uma amiga. Não esquecer a ultiminha página, onde se esconde esta citação do poeta brasileiro Manoel de Barros: “Um livro o ensinou a não saber nada – agora já sabe.”

OUTRAS APRESENTAÇÕES:
Todas as outras obras do autor, com sabor a África (Angola), com incursões por diversos modos e géneros literários. Para os que sararam “feridas”, sugerimos um “genérico” de composição idêntica – Diário inventado de um menino já crescido, de José Fanha. A intertextualidade assenta na recordação, vista pelos olhos de um menino grande, com um comprimento de onda confessional semelhante ao do nosso autor.

Votos de rápidas melhoras!
Jack Duarte

1 comentário:

LeonorBarros disse...

Esta leitura fez-me muito bem à alma e teve um efeito retemperador sobre o stress do quotidiano. Recomendo! :D